Tuesday, December 1, 2015

Alimentando o monstro

RASCUNHO


População da região metropolitana (oficial + Utsunomiya): 40,1 milhões
Número de estações: 2300
Número de linhas: 115
Passageiros por dia no sistema de trilhos: 40 milhões
Percentual de trilhos no transporte veicular: 65%

Tóquio tem 30 operadores de trens metropolitanos. Digo, 30 companhias diferentes, como em São Paulo temos CPTM, Metrô, e ViaQuatro. Nove deles têm cinco linhas ou mais cada. Só na estação Shinjuku passam doze linhas, de cinco operadoras.

Vou deixar você parar pra pensar no que isso quer dizer.

Tanto em tamanho quanto em bagunça. E apesar da bagunça regulatória e operacional, miraculosamente tudo funciona perfeitamente - inclusive com trens usando trilhos e estações de três ou quatro operadoras numa viagem.

A confusão também se reflete nas grandes estações de Tóquio - quatro das quais estão entre as cinco estações de trem mais movimentadas do mundo. Elas estão a um mundo de distância das estações monumentais da Eurásia continental, ou de Quioto e Osaca ali ao lado. São, antes, coleções de puxadinhos, verdadeiros formigueiros com dezenas ou até centenas de corredores e passagens de acesso. Os espaços maiores não estão nas grandes estações centrais, mas nas mais remotas, que ainda são enormes e que fizeram grandes espaços de telha de fibrocimento e ferro nu. Na estação que se chama, simplesmente, Tóquio (nós chamaríamos de "Central"), o saguão um tanto maior que existia foi depauperado para expandir o espaço de lojas, e fazer um hotel, e sobraram apenas duas pequenas cúpulas. Muita gente, muita gente em muita atividade. Não sobra tempo nem espaço pra essas frivolidades. Tempo é dinheiro. Espaço é dinheiro. Bora, bora.
Uma das três cúpulas da estação Tóquio, recém-restaurada.

E sim, mesmo com essa rede feérica, as pessoas se esmagam nos trens. Mais do que isso, são as pessoas mais esmagadas do mundo nos trens. Os índices de hiperlotação de várias linhas passam de 150% (considerando 6 pessoas por metro quadrado como lotação aceitável), e duas - Tozai, da Tokyo Metro, e Chuo-Sobu, da JR - passam de 200%. Isso quer dizer, respectivamente, 11,4 e 12,1 pessoas por metro quadrado. Sim, é lata de sardinha. Ou melhor dizendo: é um scrum de rugby. Próximo ao horário de pico, as pessoas entram com os antebraços forçando a pessoa que está na frente, e toda a proverbial delicadeza nipônica vai pro espaço. Algumas linhas têm trens em que não há assento fixo, mas só bancos escamoteáveis, pra que se aperte mais gente na hora do rush. Por outro lado, algumas linhas, especialmente nos serviços expressos, têm um ou mais vagões (ou um trem inteiro) "verdes," executivos (o nome é o mesmo que se dá à primeira classe nos trens interurbanos japoneses); por mais ou menos o triplo do preço da passagem comum, é possível sentar-se num assento razoável, num carro geralmente de dois andares. Como trens interurbanos, os vagões verdes têm cobrança aleatória por fiscais, e paga multa quem não tiver o bilhetinho. Ou melhor, paga "passagem adquirida no interior do veículo." Que custa 15x a comprada na plataforma (pode-se comprar uma passagem normal na bilheteria da estação e fazer o upgrade em máquinas na plataforma).

Um vagão verde, na linha Sobu (não confunir com Chuo-Sobu) da JR, no andar mais profundo da estação Tóquio
A principal operadora é a JR Leste, que transporta sozinha mais de 23 milhões de sardinhas, digo de passageiros, por dia dentro da região de Tóquio. A maior parte das linhas que ela opera têm um caráter mais de trem suburbano, pendular, mas há exceções bastante importantes a essa regra: são elas as linhas Chuo-Sobu (que corta o centro da cidade de leste a oeste, quase sempre em viadutos ou em taludes, ou em viadutos que viraram taludes quando o espaço embaixo foi ocupado por prédios), a Keihin Tohoku (que corta a cidade, pelo centro-leste, de norte a sul, ao longo da mesma faixa de domínio dos trens interurbanos, inclusive o trem-bala, geralmente em superfície). A JR Leste era, originalmente, a divisão leste das Ferrovias Japonesas, estatal pertencente ao governo central, que foi dividida em regiões e privatizada. O modelo de privatização, entretanto, foi extremamente fragmentário e regulado, impedindo que houvesse algum tipo de "dono." Dessa forma, os funcionários de carreira da era pública, bem como a cultura organizacional, foram mantidos; as JRs, privadas ou públicas (duas das regiões foram mantidas nas mãos do governo), se orgulham de fomentar desenvolvimento local, e mantêm linhas deficitárias abertas pelo bem público.
Uma grande estação suburbana (ainda) sem loja de departamentos integrada: Shinagawa

Falei centro-leste mas esqueci de avisar antes: o centro de Tóquio, num efeito estético e filosófico que deve agradar bastante monges zen, é um vazio. Você tem o palácio imperial, antigo castelo de Chiyoda, que é o maior espaço verde da cidade mas é proibido aos plebeus, e ao lado dele uma área extensa cheia de instalações públicas e outros equipamentos de grande porte, que significam uma densidade relativamente baixa. Em volta desse vazio, o "centro" da cidade tem antes a forma de um anel, em torno da terceira linha "não-suburbana," a Yamanote, ou linha circular, um pouco mais adensado do lado norte (entre a Chuo-Sobu e a parte norte da Yamanote). Se você olhar meio de esguelha, vê a Chuo-Sobu, que não é retilínea, transformando o percurso num ying-yang.
A mesma cúpula, vista da loja de departamentos na outra ponta da estação Tóquio. Embaixo, as plataformas de superfície.

A Yamanote tem 29 estações, 27 das quais são de conexões, e carrega por dia quase 4 milhões de pessoas - mais do que o metrô de Londres inteiro. Todas as grandes estações terminais de trens suburbanos e interurbanos estão conectadas a ela; é ela que torna esse centro anular possível, com 24 trens de 220m passando a cada hora no horário de pico - e 19 nas horas mais mortas (entre meia-noite e uma, só passam 6 trens). Isso não é uma capacidade de transporte tão violenta - é bem menos do que a linha 3-vermelha do metrô de São Paulo; o que faz com que a Yamanote transporte tanta gente é que praticamente todas as 29 estações são o equivalente de uma Sé, ou mais. Geralmente bem mais. Na estação Shinjuku, pelas roletas da JR entram 750.000 pessoas por dia. Como na maior parte das linhas da JR em Tóquio, o trem padrão da linha Yamanote é um trem de 11
As plataformas de superfície da estação Ueno. Os carros não estão no alto de algum prédio; a estação está vários metros abaixo do parque

O grande defeito, aos olhos de um brasileiro, de todo esse sistema é que não há integração tarifária plena, nem passagem de valor único dentro de um só sistema. No metrô de São Paulo mesmo que queira ir de Mogi das Cruzes até o Grajaú, mais de 100km passando por trilhos de três operadoras, você pagará uma passagem. Em Tóquio, você pagaria três passagens mínimas (por entrar nos três sistemas), e os percursos maiores dobrariam ou triplicariam o valor da passagem; o problema também ajuda a explicar por que, com tantas opções de linhas à disposição, as linhas continuam ficando tão hiperlotadas. (Pra quem usa bilhete único, há integração tarifária 100% entre Tokyo Metro e Toei) Um desvio poderia não representar muito mais tempo, mas significaria pagar várias vezes o que se paga normalmente, mesmo para quem tem o bilhete por tempo de alguma das operadoras. (Sairia bem caro ter todos eles.) A tarifa básica (de quase todas as operadoras) é 170 ienes, ou 5,6R$ - razoavelmente barato, comparado com a renda mediana japonesa - mas se você não tem a sorte de morar na mesma operadora e a menos de 6 estações de distância, provavelmente não pagará a tarifa básica. Para controlar quando se sai, você tem que por o tíquete (de papel com tarja magnética, como os de São Paulo) na roleta na hora de sair; se estiver faltando tarifa, há máquinas de ajuste de tarifa espalhadas pelas estações.


Tokyo Metro e Toei são as redes mais importantes depois da JR, e a rede formada pelas duas juntas é geralmente chamada de "o metrô de Tóquio." As duas têm bitola de 1.372mm na maioria das linhas, maior do que a da JR e da maioria das operadoras do Japão, mas usam o mesmo tipo de alimentação elétrica, por catenária, fios suspensos acima, 1500V DC; isso permite que usem as redes uma da outra, e também é o motivo das linhas que têm bitola diferente; foram construídas em trechos em que seria interessante permitir passagem a trens de alguma das operadoras mais antigas, especialmente a JR. A Toei é propriedade do governo de Tóquio, enquanto a Tokyo Metro é uma sociedade entre o governo de Tóquio e o do Japão; como basicamente o serviço delas é furar áreas densas, sem tanta possibilidade de ganhar com desenvolvimento imobiliário quanto as outras ferrovias, o governo entra pra garantir a grana de investimento. Trens e plataformas são bem menores que na JR - geralmente parecidos em comprimento com os dos metrôs brasileiros, e um pouco mais estreitos, e não há carros verdes. Em compensação, o primeiro vagão de cada trem é um vagão rosa, exclusivo das mulheres. As estações em geral são, como as da JR, simples, com pixo de ladrilho hidráulico e paredes pintadas de begem; há algumas exceções, mas são raras - e sempre incluem uma multidão de lojas.


Estação Shin (nova) Yokohama, no subúrbio epônimo. A primeira das cinco paradas do trem-bala dentro da área urbana de Tóquio. A estrutura atrás do ponto de ônibus é uma entrada do metrô.