Thursday, March 31, 2016

31.3.2015 Próximo ao Amur. Temperatura "sol lá fora." Altitude variável.

Neste dia não se fez absolutamente nada.

Mentira.

Enquanto passávamos pelo cenário de Conan, numa das cidadeszinhas paramos para tentar filar o wi-fi da estação. (A estação, simplicíssima, só tinha milico dentro, e uma máquina de pipoca automática). Thuin resolveu olhar a pracinha central da cidade. Depois, comprar uma coca. Provodnitsa e Mari quase o colhem à força, porque quase significou o pecado mais-que-mortal de O TREM SAIR ATRASADO. Sério, parece que vai morrer alguém, bando de estressado...


O degelo avançando

Muito mais biita que as elétricas que nos puxavam, vá

Cês tão achando que só tem os palácios... estação Skovorodino, pop. 9600

Estação Ledyanaya, servindo Uglegorsk e os sítios arqueológicos Kurgan. Pop. 5600

O Amur, ou Rio do Dragão Negro.

E só pra deixar o povo louco, um pouco mais à frente um atraso de verdade. Um desmoronamento de pedras, por conta do degelo, interrompeu a via, resultando em algumas horas parados esperando ela ser restabelecida. Algumas significando quase a tarde inteira. Depois disso, o trem enorme e pesadão começou a voar baixo, com direito a encurtar as paradas. Aonde se pararia meia hora, se parou cinco minutos, aonde se pararia cinco minutos praticamente o trem só reduzia o ritmo e chutava o passageiro para fora. OK, é hipérbole. Um pouco. Mas nessa não conseguimos dar uma banda, que era a idéia, na capital da República Judia, Birobidzhan (parada de 37 minutos programada, na real nem dois. Nem deu pra tirar a foto da estação, com o nome na placa em hebraico ao invés de cirílico. O trem, apesar de um desmoronamento de pedras, chegou só duas horas atrasado em Khabarovsk, e com certeza chegou na hora em seu destino final que era Vladivostok.

Ils sont fous, ces russes.

Wednesday, March 30, 2016

30.3.2015 Em algum lugar entre Ulan Ude e Chita, temperatura "dentro do trem tá 30 graus," Altitude ascendente



Os nomes dos lugares, quando se está na fronteira de Rússia, Mongólia, e China, começam a ficar com cara de algo saído de um romance de R.E. Howard. Assim é que o trem avançava, em meio a uma tempestade de neve, entre a taiga infinita e a estepe oceânica, rumo às Montanhas das Macieiras e às margens do Huluun Nuur, o lago dos pés. Em contraste com toda essa descrição de Conan, os outros inquilinos do vagão 28 do trem 7 eram, quase todos, velhinhos. Nós éramos provavelmente as pessoas mais novas do vagão por uma margem considerável. O trem passou por Chita pela hora do almoço (com as correrias do dia anterior, não tínhamos empacotado comida dessa vez, e ficamos na mão do vagão-restaurante - que, claro, pela sagrada lei de murphy, DESSA VEZ era horrível); Chita é onde começa o "delta" da transsiberiana, digamos assim; é onde se dividem a Transmanchuriana, que vai para Pequim, e o ramo para Vladivostok; também é de onde sai a ligação a norte para a Bam, que termina no porto de Sovetskaya Gavan. Enfim. A última parada em que se pode ter mais de um destino - e mesmo assim, de lá até Vladivostok seria ainda mais de dois dias.
À distância, as Montanhas das Macieiras. No primeiro plano, algum afluente do Rio do Dragão Negro

As montanhas das macieiras são mais íngremes que os Urais, e a paisagem, mais espetacular, mas ainda assim nada parecido com a Serra do Mar; são montanhas marrons e brancas na distãncia, mais do que passes espetaculares a torto e a direito, e o trem não avança reto como pelo meio da Sibéria, mas também não chega a fazer nenhuma curva que se sinta. Uma coisa que não deixa de ser fascinante é como, mesmo no meio de absolutamente lugar nenhum, as estações das cidadezinhas têm oito, dez pares de trilhos; não é tão estranho, se você lembrar que a cidadezinha nasce justamente em volta desse pátio de carga.
A última côdea do pão finlandês

Devia estar gélido do lado de fora, com os rios apenas começando a degelar, mas no trem fazia tanto calor que fazíamos o que chamamos de "ligar o ar condicionado" - abrir a janela, mesmo quando estava nevando fora, e morrendo de medo de tomar esporro da provodnitsa.

Tuesday, March 29, 2016

29.03.2015 Listvyanka -5 a -10C, com sensação térmica de Frio pra Cacete, Altitude 460m



Já um pouco melhor das dores (a banya com choque térmico e açoite de bétula realmente é mágica), acordamos, tomamos café da manhã (manteiga, creme, e mel no pão preto), e fomos descer a rua rumo ao Baikal. A rua poderia ser uma rua de cidadezinha de qualquer lugar do mundo pela maior parte; só uma ou duas casas eram de estilo particularmente russo. Numa dessas, tomamos um susto porque pulava e latia para nós um cachorro. Bem, acho que era um cachorro, porque urso não late. Acho. Mas o bicho tinha fácil mais de 1,20m de altura nas quatro patas, e era mais largo que um pitbull, além de peludíssimo. E a cerca, pequena e meio podre; o que nos salvava (fora, acho, que ele queria só latir e não devorar) era a corrente em volta do pescoço do bicho.
Em cima, a neve fresca; embaixo, 7m de gelo, mais transparentes que a janela do seu quarto

Depois do susto, chegamos enfim ao Baikal e... tinha caído muita neve logo antes, então ele estava
branco como um lago congelado normal, ao invés de transparente. Foi ligeiramente decepcionante, mas nem tanto, já que nenhum dos dois nunca tinha visto um lago congelado. Antes de nos aventurar andando sobre as águas, resolvemos catar dinheiro vivo pro que desse e viesse, e andamos à procura dum banco e do escritório de turismo da cidade, pra catar um mapa; acabou que o banco era no escritório de turismo (e defronte ao hotel mais feio do mundo).

Andar sobre as águas congeladas (e era só bater um pouco a neve fresca que se via o gelo transparente embaixo, e as abissais e negras profundezas) é uma experiência incrivelmente "gringo na praia" para dois brasileiros, desacostumados até com gelo comum. Andávamos pé ante pé, tomando cuidado para se firmar bem, tentando detectar algum movimento sob nossos pés... enquanto a alguns metros crianças corriam, galera fazia churrasco, outro punha pra tocar música brega de uma porcaria de CAMINHÃO estacionado. Mas o medo instintivo olhando para as águas negras sob o gelo não largava mão, e continuamos andando a passo de cágado.

Resolvemos comer, e fomos primeiro na feirinha onde se assava peixe na brasa e comia peixe seco também, mas não apeteceu tanto; ao lado, tinha um show de focas, mas escrúpulos falaram mais alto, e deixamos pra lá o show (até porque sabíamos que tinha o aquário, sério, pra olhar depois. Indo e vindo (e congelando), acabamos entrando num restaurante que pareceu simpático. O restaurante era especializado em peixe, e pedimos à garçonete-caixa-acho-que-devia-ser-irmã-da-cozinheira um prato com filé de esturjão com creme e pinhões de cedro-da-sibéria, e um prato de omul en papillotte com legumes - omul sendo um peixe incrivelmente gordo e gostoso que só dá no Baical.
O mapa do Baical, e a maquete das águas do lago
Do restaurante, seguimos para procurar o museu de estudos locais. Que não devia ser longe, numa cidadezinha dessas, né... é claro que a cidade tem pouca gente, mas tudo estendido ao longo da estrada e nos valezinhos, que entre o último valezinho antes do museu tem um esporão de rocha e portanto vários quilômetros, e que o vento gelado que chegava em nós depois de passar pelo maior e mais límpido cubo de gelo do mundo tornava tudo mais agradável. Enfim... depois de algumas horas de sofrimento, chegamos enfim ao museu, que ao lado tinha um pequeno jardim botânico especializado em flora local. "Flora local" significa (sim, a gente foi passear pelo jardim, que não tinha catraca nem nada) basicamente 587 variedades de bétula e espinheiro, e uns pinheiros. Curioso foi que ao longo de todos os caminhos de madeira (imagino que o degelo seja violento) que trilhávamos tinha lá o cano de incêndio do tamanho da minha coxa.
Tenho quase certeza de que na placa estava escrito "mi-go."

O museu-aquário em si é interessante, com muita coisa sobre o lago, um simulador de batisfera descendo ao fundo do lago, toneladas de informações sobre geologia e limnologia (menos sobre antropologia e história), e, finalmente, o aquário. Com uma pá de bichos exóticos das profundezas e, de grand finale, o pedaço de tanque (tem uma área maior isolada dos humanos xeretas) onde duas nerpas, as focas do Baical e únicas focas de água doce do mundo, se exibiam. Pareciam duas bexigas enormes, desengonçadas na terra, ou dois barba-papas... mas na água as bichas viravam de repente acrobatas. Todas as crianças, que tinham russamente obedecido as placas de "silêncio" no resto do aquário ignoravam as mesmas placas na frente das nerpas, claro. E na saída, tivemos de comprar uma nerpinha de pelúcia da cameloa que fazia as vezes de lojinha do museu...

Já estava na hora de voltar pra Irkutsk. Aliás, se voltássemos a pé, já estaria na hora de perder o trem. Então ficamos esperando um táxi. E esperando. Ou carona, servia. Esperando. Meu deus, que frio. Esperando. Porra, aqui tá escrito "ponto de táxi," cadê. Esperando. Enfim, apareceu nosso redentor, um táxi pirata com uma placa de táxi de Los Angeles amarrada no rebatedor pra poder esconder se pintar polícia. O carro, um carrão japonês rebaixado, com vidro rachado. Vai tu mesmo. Pegamos, passamos no albergue, fizemos check-out, e toca pra Irkutsk. A ideia original era passar na volta num museu de casas rurais, mas depois de ver como Thuin ficou na ida, nem pensamos nisso; a prioridade era chegar em Irkutsk e, de preferência, achar uma massagista. O sujeito não decepcionou: corria que nem um doido, fazendo ultrapassagem em curva e tudo. Curiosamente, pro Thuin isso foi melhor do que a ida, porque se demorou meia hora foi muito. Mari, em compensação, quase teve uns quinze ataques cardíacos. Chegamos na estação, deixamos as malas no armário, e fomos à busca da massagem que tínhamos visto no tripadvisor. Pegamos um táxi, oficial desta vez, e... pqp, o doido está correndo nas placas de concreto do trilho do bonde. Placplacplacplac e lá se vai o pescoço. Enfim. E quando chegamos no tal hotel com a massagem maravilhosa, depois de muito rodar (o nome na placa não era o mesmo do tripadvisor), só amanhã. Mas a moça sugeriu a massagem da loja da L'Óreal (pela qual tínhamos passado umas 3x), então lá fomos. Pelo menos a procura serviu pra dar uma bisoiada em Irkutsk, que é realmente bastante bonita, pena que com tão pouco tempo. Enfim. O massagista da L'Óreal realmente era muito bom, deixou Thuin quase parecendo gente, e ainda tínhamos tempo de jantar. Por sorte, ali perto tinha um restaurante de comida mongol (estávamos a um cuspe, em termos russos de distância, da Mongólia), e nele fomos. A comida não é muito imaginativa (basicamente variações de empadão e guioza de carneiro e boi), mas muito gostosa; a decoração remete à Horda de Gênghis Khan, com direito a armaduras nas paredes; o chope é duma cervejaria chamada DRAKON. Enfim. Mais um momento "estou dentro de uma capa de disco de metal." E pra completar, na saída estava começando uma tempestade de gelo, daquelas em que a chuva cai no chão e já vira gelo, ruas viram ringues de patinação, e mesmo em lugares como no norte dos EUA e Canadá ninguém sai de casa. Os siberianos doido tuda fazendo trottoir. Com medo de outro táxi, pegamos o bonde até a estação, chegamos em cima da hora, corremos, iáaaa e entramos na nossa cabine de primeira classe, em que ficaríamos sozinhos pelas próximas 60 horas (Bendito Dostoiévski.) O trem partiu, em meio à tempestade de gelo, comme si de rien n'était.



Monday, March 28, 2016

28.3.2015 Irkutsk -4 a 8C Altitude 428m

O trem que nos levou a Irkutsk foi o mesmo que faz a Transmanchuriana, por isso o brasão da China. 

Enfim chegando a Irkutsk (a viagem foi curtinha, afinal - só uma tarde, uma noite, e uma manhã) um pouco depois do meio dia, estávamos na dúvida sobre se iríamos ou não para Listvyanka, ver o lago Baikal, afinal. Motivos pra ir: é a porcaria do lago Baical, com o gelo transparente; tinha o aquário das nerpas; o albergue fofo era dos lugares de que tínhamos mais gostado de todos. Motivos para não ir (e para se arrepender de, constatado que o trem era tranquilo de pegar, ter ido de Krasnoyarsk pra Severobaikalsk, no norte do lago, mas isso era pra ter visto quando compramos as passagens e a Inês já era morta): 100km de carro, sendo que pra ir na esquina Thuin já fica ruim. Resolvemos ir na matriz do albergue de Listvyanka, em Irkutsk mesmo e perto da estação de trem, e perguntar para eles como seria, inclusive da possibilidade de ficar neles ao invés de em Listvyanka. Chegando lá, acabou a vontade falando mais alto que a prudência, e o povo do albergue mesmo solicitou um táxi pra gente; uma van japonesa (sério, com instruçãozinha em japonês em tudo que é canto e motorista do lado contrário) dirigida por uma senhorinha. Um pouco mais de hora e meia depois, dirigindo por um caminho que começa ao longo do rio Irkut e depois envereda pelo meio da taiga, estávamos em Listvyanka - Thuin tão derreado que não conseguia carregar nem a mochila de mão para ajudar. Chegamos no albergue, a moça bufou com o povo de Irkutsk que não tinha falado pra deixar lá mesmo as mochilas grandes, nos apresentou a casa e nosso quarto, e explicou como funcionava a banya; o lugar era realmente lindíssimo, todo de madeira nova, mas a única preocupação naquele momento era deitar no chão e tomar um monte de remédios; até se levantar já era noite, e fomos aproveitar, à noite, a banya, que era uma casinha situada fora da casa principal do albergue.

A estação de Irkutsk. Por algum motivo, lembra Petrópolis


A banya, que nos foi explicada pelo carpinteiro-mecânico-pau-pra-toda-obra, que era basicamente um anão do Tolkien (mais largo que Thuin, e com uns 1,60 de altura) era uma delícia, a lenha, com um balde que se enchia com água vinda direta da nascente nos morros em volta, ou seja, de água bem próxima de zero grau, uma antesala onde se podia jogar xadrez, e ramos de folhas de bétula pra se açoitar. Dilicioso. Saímos de regata no meio da neve, com a pele fumegando e sem sentir frio. Mais tarde, já à noite mesmo, descobrimos que chovia no corredor; era a caixa d'água, que é enchida com água de nascente, vazando porque a bomba ainda não estava bem instalada (a casa ainda tinha cheiro de madeira nova); foi lá nosso herói anão a praguejar contra o degelo pra resolver a chuva indoor. E comemos macarrão que tinha disponível pros hóspedes de janta, com restos mortais de coisas que tínhamos levado pro trem e tomate enlatado.

O albergue em Listvyanka

Sunday, March 27, 2016

27.3.2015 Krasnoyarsk. Temperatura -8 a 4C. Altitude 140m

O trem partiria para Irkutsk às duas da tarde, o que significou passar a manhã basicamente se arrumando (café da manhã-fisioterapia-banho-arrumar malas-checkout). Paramos apenas para admirar nossa primeira nevasca fora do trem, que durou míseros 15 minutos mas deixou mais de 4cm de neve nas ruas, e tentar passear um pouco pelas ruas em volta do hotel antes de pegar um táxi para a estação, que achamos que seria mais rápido que o ônibus; na estação, pegamos uns pacotes de purê de batata instantâneo para preencher a maleta de suprimentos. Ao chegar na cabine da 2a classe, encontramos o beliche do outro lado ocupado por dois passageiros, pai e filho, Dima e Nikita. Dima era baixinho, rechonchudo, topetudo, e falante; seu filho era alto, magro, reco, e o único som que emitia era o da mastigação de sementes de girassol torradas. Dima é controlador de vôo nos longínquos sertões da Sibéria, e nos explicou, durante a viagem em comum (eles iam de Omsk a Khabarovsk, de onde pegariam um ônibus para o norte), que no norte mesmo há áreas imensas de taiga sem nenhum radar monitorando - fora da Rússia, só se encontra isso basicamente no oceano, e os pilotos que cruzam o mar tentam minimizar o tempo passado nessas áreas "em branco." Na saída de Krasnoyarsk, enquanto cruzávamos o Ienissei, vimos a nova ponte rodoferroviária que está sendo construída sobre o rio.


Saturday, March 26, 2016

26.3.2015 Krasnoyarsk. Temperatura -4 a 6C. Altitude 140m


Nilo na Sibéria
Já disse que o hotel de Krasnoyarsk era muito, muito feio, né. OK, não vou dizer de novo. Mas a praça em frente até era jeitosinha, fora estar em obras. É que assim como Kazan havia recebido a Universíade de verão em 2013, Krasnoyarsk estava se preparando para receber a de inverno em 2019. Tomamos o farto café da manhã do hotel (com muitas geléias e méis e blinis e... momento Thuin dando gritinhos) e fomos para o museu regional, depois de passear um pouco pela cidade. O museu (que fica quase ao lado do hotel) é... bem.... é um templo egípcio. Um templo egípcio no meio da Sibéria, olhando para o Ienissei ao invés de para o Nilo. (Admita-se, como vista o Ienissei, que em K. tem mais de uma milha de largura, é bem mais amplo do que o Nilo.)  Dentro dessa visão surrealista, o museu integra num só lugar museu de arte, de antropologia, de história natural, de história... o que vier, relacionado à região (o krai de Krasnoyarsk não é lá muito menor que a Argentina), é lucro. No subsolo do museu, uma exposição sobre o povoamento da região, desde os hominídeos até as culturas turco-mongóis e aos russos. Bastante nova e bem montada, com direito a truques de luz para fazer os bonecos que trajavam as vestimentas rituais xamânicas parecerem vivos, reconstrução de interiores de casas e tendas de diversas culturas, e um mapa de luzes pelo qual se podia olhar para todos esses aspectos.  No 1o piso, a exposição era maior mas mais velha: um imenso saguão dividido numa nave de pé direito triplo e alas laterais, com uma réplica em tamanho navio cossaco no meio da nave, cheio de bonecos de cossacos dentro. Proibido para crianças um pouco maiores como nós, mas liberado para as crianças pequenas correrem pra cima e pra baixo, com uma escada para se chegar no navio. Hmph. Nas alas laterais, a parte de história natural, com muitos fósseis e bichos empalhados, e a recriação de interiores de casas populares do período czarista. No segundo andar, além da varanda olhando pro navio cossaco, exposições sobre tecnologia (inclusive a réplica de um satélite montado ali mesmo), uma exposição temporária sobre a 2a Grande Guerra, e a reprodução do saguão de uma mansarda nobre ,especificamente da que pertencia a um dos dezembristas exilados depois de tentar derrubar o czar; esta se confundia com uma exposição sobre a evolução dos sistemas de ensino, desde os professores privados do começo da idade moderna até a escola de hoje em dia.
A MOTHERFUCKING COSSACK CORSAIR FUCKING SHIP

Saindo do museu, pegamos (na praça em frente ao hotel, de novo) um ônibus para as bordas da cidade, atravessando uma ponte sobre o Ienissei, e através duma ilha-parque que fica no meio do rio. Nosso objetivo eram os stolby, descritos no guia como formações rochosas únicas irrompendo da terra. Depois da ponte, passamos por muitos edifícios modernistas-chumbregos (a forma urbana lembrava as asas de Brasília,  com prédios sobre pilotis no meio de quarteirões-parque), e muitas lojas de material de construção, até chegar no ponto final, que também era uma estação de esqui. A estação tinha cara chiquérrima, de Chamonix mesmo, e ficamos com medo de nosso almoço sair a preços suíços, mas o medo era infundado; na cafeteria com cara de nova-rica, não chegamos a pagar 20 reais pros dois, para almôndegas, peixe, papa de sarraceno, bolinhos, e um litro de cerveja. E fomos lá pegar o elevador de esqui (não sem alguma trepidação por parte de Mari). No elevador, descobrimos um pequeno detalhe: quando já está frio, ir pro meio do mato e subir uma centena de metros significa FICAR MUITO MAIS FRIO. De sentir as mãos congelando dentro das luvas grossas de termofleece, e não conseguir usar a câmera direito, durante a ascensão. Lá em cima, saímos correndo rumo ao pequeno café, ou tão "correndo" quanto dá pra se deslocar em cima de sei lá quantas dezenas de centímetros de neve fofa, para buscar o Santo Graal do tchai. Dva tchai. Mais dva tchai por favor. E os adolescentes em volta pulando da cadeirinha direto pra pista praticamente. Momento gringo camarão em Ipanema total. Depois de descongelados, fomos olhar os tais stolby. E bem... não é que não fossem legais e tudo mais, umas pedras grandes supergenteboa saindo da floresta, mas... bem, pra quem cresceu com o Pão de Açúcar e o Corcovado, pedras que só se vê de perto ou de binóculo foram meio anticlimáticas.
Um stolby. Sim, é só isso.

Na volta, procurando o ponto de ônibus para voltar, nos deparamos com o teleférico pré-universíade, que era um tico mais modesto que o pós-. Um tico as in um predinho de um andar de azulejo branco, com umas cadeirinhas de prástico estilo parque de diversões de interior ao invés do predião de aço e vidro com cadeira quíntupla de aço e materiais compostos. No ônibus da volta, um mendigo trêbado se juntou aos passageiros, e ele fedia muito. Mas muito. A trocadora, assim que entrou (lembrando: o ônibus não tem catraca, e o trocador passeia pelo interior) o fuzilou com os olhos e foi correndo perguntar se tinha dinheiro pra passagem. Tinha. Todo mundo enfiando a cara na roupa, abrindo as janelas apesar de estar nevando um pouco. O pobre coitado nada de sair. Finalmente, quando cruzávamos de novo a ponte sobre o Ienissei, ele se levanta: ia sair no mesmo ponto que nós. E grazadeus pela falta de catraca...saiu ele por uma porta e uma cabeçada pela outra porta. Antes de voltar ao hotel, passamos na galeria do lado por curiosidade, e descobrimos uma espécie de baú do tesouro de cosméticos; Mari queria comprar tudo, de uma marca chamada Natura Sibirica, que era tipo uma Natura melhorada - só que por um preço absurdamente barato. Como ainda tínhamos um mês de viagem, ao invés disso compramos só dois cremes para Mari e três para dar de presente.
A vista da cadeirinha voltando

De volta ao hotel, de volta à banya com piscininha gelada, e saímos pela noite da cidade. Só que bem, a noite de uma cidade de interior no meio da semana. Acabamos indo parar num pub (sim, pub), que tinha uma decoração simpática à base de estantes (na nossa mesa dava pra ler Tolstói, a família Robinson, Dickens, e Chekhov) e um cardápio vegano engraçado, além das mesmas cervejas européias que você encontraria num pub de São Paulo. Mas ok. Tocava música indie.

150 rublos dá uns 8 reais

Friday, March 25, 2016

25.3.2015 Krasonyarsk. -2 a 4C. Altitude 140m



Chegamos em Krasnoyarsk ainda de manhã cedo. Depois de um breve susto porque tínhamos esquecido parte da bagagem no trem (deu pra achar antes dele partir - a parada em Krasnoyarsk é de mais de meia hora), atravessamos a praça (com um pouco de dificuldade pela combinação chuva fina, gelo no chão, e vento ciclônico), e pegamos um trólebus para o hotel. Com as janelas completamente cobertas de lama; não deu pra ver nada da cidade nesse caminho. OK, do centro da cidade; da estação até o hotel, um mamute horroroso soviético, não são três quilômetros. Depois de descansar um pouco, fomos procurar, pela ordem, luvas e o museu de arte contemporânea. As luvas, achamo-las na TsUM, com uma vendedora de luvas que comemorava o próprio aniversário e achou divertidíssimo brasileiros aparecendo por lá. O museu, nos perdemos antes de achar (depois, olhando o mapa no hotel, nos demos conta de que desistimos a exato um quarteirão de distância). Passamos, também, por uma livraria onde compramos um mapa grande da Rússia para ir traçando o caminho percorrido e demos a buquinada possível quando se fala a língua apenas de tatibitate. Nessas andanças todas, também vimos várias das casas de madeira tradicionais russas, com as decorações "rendadas" que ainda persistem no centro de Krasnoyarsk, a maioria delas transformada em centro cultural ou prédio do governo, e paramos pra comer numa pielmeniaria, ou ravioleria. O conceito é maravilhoso, mas a comida não era assim tão boa.

À noite, pudemos ir na banya do hotel. Como na sauna na Finlândia, a sauna russa é umas cinco ou seis vezes mais quente que a superfície do sol, com um chapeuzinho de feltro pra se por na cabeça para não desmaiar, e essa tinha um bônus: uma minipiscina na frente da sauna, cheia de água extra-super-hiper gelada. A sensação era positivamente maravilhosa.


Thursday, March 24, 2016

24.3.2015 Charneca de Omsk -12 a 4C. Altitude descendente.

Mil quilômetros de pântano


O trem continuava a descer dos urais, e entrava na charneca de Omsk: milhares de quilômetros de taiga pantanosa. Em algum momento do dia - você para de prestar atenção nas horas quando não tem nenhuma perspectiva de sair do próprio quarto, e quando a luz vem de um céu branco-cinza e muda quase imperceptivelmente ao longo do dia, e a paisagem nem isso muda - chegamos em Omsk. Antes e depois, uma visão de um pântano, os juncos soterrados pela neve e apenas despontando aqui e ali, com ilhas de bétulas brancas e espinheiros vermelhos, quase infinita, quase invariável. Em algum momento, vimos um monte de objetos pretos ao longo da ferrovia; depois de um tempo nos demos conta de que eram abrigos de caçadores; mesmo no inverno, havia um número razoável de pássaros.
Momento War

Depois de Omsk (muito depois de Omsk) a charneca vai dando lugar ao começo da estepe. A estepe pode ser quase infinita, mas é menos talhada a plaina pelos deuses do que o Pampa argentino; não se vê um morro, em milhares de quilômetros, mas se vê leves ondulações do relevo, bem leves, só o suficiente para o olhar perder ainda mais as distância. E elas são imensas; entre as cidades até pequenas, são horas e horas. Chegando em Novasibirsk, resolvemos saltar para dar uma bizoiada na estação ("a maior da Sibéria," dizia o guia). Por fora, muito parecida com mais de uma pelo caminho só que maior; uma versão em escala ferroviária duma mansarda italianesca do período imperial, pintada de azul celeste. Por dentro, além da opulência de materiais, uma quase-floresta sob a cúpula, com um monte de plantas para esquecer a aridez do inverno. Fomos no banheiro também (os trens mais antigos jogam o cocô no trilho, e por isso trancam os banheiros 1h antes e depois das estações principais), arrumamos um café horroroso (ao invés de mais chá ótimo), e compramos chocolates de uma fábrica local com nomes de deuses eslavos. Atualizamos a família, já que toda estação de trem tem wi-fi.
Acho que neva um pouco

E toca-lhe mais e mais trem.

Comiida

Wednesday, March 23, 2016

23.3.2015 No trem Temperatura -8 a -2C, Altitude crescente.

A "floresta" dentro da estação Novosibirsk


Ao longo do primeiro dia no trem entre Cazã e Krasnoiarsk, estávamos subindo os urais. O trem não chegava nunca a fazer algo que, aqui no Brasil, chamaríamos de curvas, mas fazia curvas o bastante para serem percebidas e até, às vezes, para ver a outra ponta do comboio de quinhentos metros; alguns trechos de cortes na pedra faziam lembrar que, como deixavam claro os museus de história natural tanto de Moscou quanto de Cazã, aquelas rochas eram de onde ganhou nome o período "permiano" da história do planeta, e imaginar animais pré-históricos e paleontólogos oitocentistas por ali. Tomamos café da manhã com as compras do mercado, e resolvemos na hora do almoço ir conhecer o vagão restaurante. Este tinha cara de avião, todo plástico moldado e courino azul, mas a comida - comemos duas djulienes, cremes com cogumelos e língua - era muito boa, se um pouco cara. O ritmo no trem quando você se dá conta de que vai passar o dia inteiro nele - e o dia seguinte também - é bem diferente do ritmo de quando só vai passar a noite. Ele rapidamente vira mesmo a sua "casa," inda mais quando você está na cabine da segunda classe. Neste começo da viagem, nosso "colega de apê" era um sujeito de seus vinte anos, que pôs um jornal na hora do café da manhã sobre a mesa sem o ler, e lia um manual de engenharia viária; lá pelas quatro da tarde, ele saiu em Iecaterinenburgo, e ficamos sozinhos por um tempo. Foi nessa hora que também descobrimos que, se não havia tomadas dentro da cabine, havia no corredor e, longe da paranóia com os próprios pertences mencionada nos guias, todo mundo deixava os celulares e e-books nessas tomadas do corredor, fosse imprensados nos strapontans, fosse pendurados na janela. Em Iecaterinenburgo, ainda compramos um pão na padaria da plataforma (não dentro da estação, na plataforma mesmo). Tinha forma vagamente de pão de forma, mas casca grossa e miolo acastanhado, cheiroso. Na mesma plataforma, Mari ficou indignada de ver uma moça russa de roupa de ginástica sair do trem pra andar de um lado pro outro na neve.
Uma curva!


Depois de Iecaterinenburgo, a descida dos Urais era um pouco mais íngreme, mas ainda nada remotamente próximo do que chamaríamos de "serra" aqui no Brasil. E nem reparamos quando saímos da Europa e entramos na Ásia...

Bilheteria em Novosibirsk 
O teto da sala de espera em N. 

...e a tabela de horários

Tuesday, March 22, 2016

22.3.2015 Cazã -8 a 2C, altitude 56m.

De dentro da área de trens metropolitanos da estação em Kazan

A combinação de noite dormida na cama de 3a classe, em que não dava pra se acapanchar de costas ou bruços direito, com um dia inteiro andando pra cima e pra baixo, significou que Thuin estava basicamente entrevado e imóvel, então o dia foi passado basicamente descansando; mas fomos, preocupados com não achar horário agora que íamos sair do coração do país e as distâncias se multiplicariam, comprar as passagens todas para a próxima semana, ao invés de seguir comprando só de véspera. (E cancelar as passagens compradas Kazan-Krasnoiarsk na 3a classe.) Demorou um tantico, entre nosso péssimo russo e indecisão, mas acabamos conseguindo, e saímos da estação de trem com mais uma coisa incrivelmente preciosa pra ficar paranóico de perder (desde o começo já havia o JR Pass e os passaportes). Descansamos até de noite, e à noite fomos pra TsUM, a loja de departamentos chique ainda da época soviética, abrigada num monstrengo brutalista (e olha que normalmente a gente curte brutalismo), pra comprar uma bolsa que substituísse a mochila rasgada, e aproveitar pra passar no supermercado de lá (o mercado municipal sendo mais longe pra andar) e comprar provisões pra viagem, incluindo koumiss (goró de leite de égua), queijo com pétalas de rosas, frutinhas, manteiga, mel, carnes curadas...
Mel. Sim, mel. Meeeel.

Na saída, a idéia era voltar pra "rambla" a pé, mas o vento que corria pelo Volga cortava mais que todas as espadas da Horda de Gêngis Cã, então pegamos foi o metrô mesmo. Duas estações, OK. Na saída do metrô, descobrimos que a rambla tem um andar subterrâneo, com lojinhas e espaço de circulação; dá pra ir a pé duma estação de metrô à outra, escapando do frio. Mas nenhum restaurante habitava o subsolo, então fomos encarar o frio da noite. A galera da balada não parecia se importar tanto com o frio quanto a gente, e conversava animada rua afora. Acabamos indo parar num prédio compartilhado por quatro restaurantes. Uma cervejaria alemã, um restaurante italiano, um restaurante "medieval inglês," e um usbeque. Fomos no usbeque, claro, que tinha tanto mesas comuns quanto mesas baixas com almofadas e "tendas," as costas de Thuin não deixaram ficar na opção maneira, mas a comida era boa, lembrando uma mistura de árabe, russa, e chinesa (muitas, muitas especiarias e temperos, ao contrário do normal na Rússia), e para finalizar tinha um "chá do caçador" que era feito com chá defumado - estilo Lapsang Suchong - com frutas secas boiando no meio. Mari, em especial, virou fã. O pão era tão bom que pedimos mais para a viagem.


Cês acham que só o metrô de Moscou é escalafobético...

Voltamos pro hotel e fizemos o check-out. Pelo baixo movimento, a moça nos deixou ficar no quarto depois do check-out, até a uma da manhã. E finalmente, às duas, fomos lá rumo à estação (o frio estava pior ainda) para nos perder um pouco sobre a plataforma certa e embarcar no trem. Com direito à provodnitsa não querendo nos deixar entrar porque o nome de Mari não estava grafado exatamente igual no passaporte e na passagem (só deixou depois de inclusive chamar a provodnitsa-chefe do trem - que também não chegou muito feliz, depois de andar os 500m do trem naquele frio. Sim, trens na Rússia têm meio quilômetro.)
A torre dos bogomils à noite

O trem saiu de Kazan num negrume absoluto. Só se via, ao longe, as luzes da própria cidade, e a cena meio "dark satanic mills" (Thuin) ou de céu dourado (Mari) da termelétrica e da refinaria, depois do Volga. Mari ficou fascinada com o céu dourado às duas da manhã. Passamos pela ponta européia da Estepe, mas sem ver nada...

Dark Satanic Mills