Em nosso último dia em Osaca, fomos ver o que não deu pra ver em Moscou nem em Irkutsk: um parque no subúrbio com construções rurais em madeira. Acordamos bem cedo, porque afinal de contas tínhamos trem pra Nagóia depois Ise mais tarde, fizemos check-in e largamos as mochilas num armário na estação shin-, e pegamos o trem. O subúrbio em questão, Ryokuchi, é razoavelmente longe - uns bons 12km e meia hora de trem, que não era da JR então tivemos que pagar, da estação Central. Conforme o trem ia avançando, a altura dos prédios não diminuia linearmente, ao invés disso a quantidade deles ia diminuindo e se entremeando cada vez mais com prédios baixos e casas. Nesse sentido, o Japão inteiro - ou pelo menos o que visitamos - se parece com uma grande São Paulo, não fosse o trem ter um ziguilhão de anúncios a mais, assentos estofados com molas e, no caso, fórmica imitando madeira nas paredes. Quando chegamos na estação, Thuin tinha perdido o bilhete de saída - particularmente problemático porque já não estávamos na zona 1, em que se você entrou você pagou o certo. Mas quando chamamos o guarda para explicar ele, apesar de não falar inglês, concluiu pela nossa cara de aflito que a categoria era "gringo perdido" e não "gringo querendo ser malandro," e liberou a saída pra gente.
Da saída da estação, que é subterrânea apesar da própria estação ser em superfície, sai algo que é entre um tentáculo do parque e uma rua de pedestres até o parque propriamente dito. Este, bordejado por um canal, é razoavelmente grande, todo em aclives suaves com muitos patamares. Na entrada uma cerca para impedir motoqueiros de entrar, com uma "porta" circular pra permitir o acesso de cadeirantes. Chovia a cântaros enquanto andávamos procurando o museu de casas rurais, e a maioria das muitas cerejeiras estava já completamente depenada de flores; algumas até já tinham folhas, assim como todas as castanheiras, que além disso já estavam dando castanhas, em alguns lugares o chão estava coalhado de castanhas portuguesas, lembrando a época (mais ou menos abril, também, aliás) em que as palmeiras dão coquinhos nos parques do sudeste do Brasil. No meio dum lago, um velho vestido de túnica chinesa praticava tai-chi numa ilhota que era inundada por uma fonte de vapor de três em três minutos. Achamos hardcore. A ilhota deve ser mais crowdeada no verão... além do velho, a única outra viv'alma que vimos no meio dum toró no parque numa manhã de dia útil foram uma mãe com a filha vestida de arco-íris, que animadamente pulava na poça em volta dum grande canteiro de tulipas.
O "museu" na verdade consiste de uma área do parque em que se remonta casas e outras propriedades rurais tradicionais que estão prestes a serem demolidos pela marcha inexorável da especulação imob- digo, do progresso. Como a casa tradicional japonesa é feita de madeira, não chega a ser um trabalho muito complicado. Há casas de todo tipo, a mais antiga do finzinho do século XVIII e as mais novas já dos anos 60. Quase todas muito simples, fogão-de-barro e pessoas-dormem-com-cavalo simples, mas todas desbundantes; deu ainda mais peninha de não ter ido no equivalente russo. Enquanto visitávamos arregalando os olhos, a administradora do museu achou fascinante aquele par de gringos sabe-se-lá vindos de onde, e nos perguntou se éramos pesquisadores de arquitetura, que aparentemente é o único grupo grande de turistas de fora de Osaca que aparece por lá. Depois de explicarmos que não, só curiosos mesmo, ela nos convidou pra ver o processo de cura de uma das casas.
Como as casas são de madeira sem verniz, e por mais que se use madeira dura, bem, chove pra caramba no Japão. Mais ou menos a mesma coisa em Osaca que em São Paulo, mas mais distribuído ao longo do ano, e com bem menos sol pra secar. Então os tetos de palha têm que ser curados, cheios de fumaça para espantar os insetos e mofo, e o povo fazia disso quase um ritual, que inclui fazer chá no fogo da fumaça. O velhinho que conduzia o ritual, que morava nos arredores (parece que toda a área é uma área cheia de migrantes do êxodo rural dos anos 60), nos explicou bastante sobre os detalhes da construção da casa, limitado principalmente porque nem a administradora nem nós entendíamos tanto quanto ele de madeiras e seus usos, então a tradução às vezes emperrava bonito.
Depois de concluida a cura, andamos mais, só não vendo direito justamente a mais impressionante de todas, que era uma casa de Shirakawa-Go, já que iríamos depois na própria. Havia também uma casa-celeiro do extremo sul de Kyushu feita de pau-ferro, com cara de coisa polinésia, havia casas mais elaboradas e recentes, ou mais primitivas (com paredes de palha ao invés de madeira ou taipa), uma casa grande e meio europeizada em que um grupo jogava RPG live action, e muitos rododendros na chuva. Havia instrumentos tradicionais de tudo que é ofício espalhados pelas casas, da cozinha à carpintaria, também, e em algumas explicações de tradições e superstições do local de onde vinha a casa.
Na volta do parque, vimos uma sobaria que parecia bem gostosa na entrada da estação, mas deixamos pra lá porque tínhamos decidido ir, em homenagem ao cumpadre Rafael, na Dotombori pra comer miojo. Chegando em Namba, já ficamos na dúvida se tinha sido boa ideia porque o tempo já era meio apertado. A estação Namba do metrô está sendo reformada pra ficar chique e virar uma loja de departamentos subterrânea, então alterna áreas com um alucobond branco imaculado e áreas de pastilhas encardidas de cor indeterminada. Fora dela, o caos organizado daquelas imagens de estereótipo do Japão, com um minhocão passando sobre a avenida, fios de luz pra tudo que é canto, lojas, lojas, lojas, lojas, compre compre compre, passagens cobertas, galerias, um caranguejo gigante semovente, um canal (como coube um canal aqui), ainda, mais lojas, restaurantes... impacto visual nível um milhão, lei cidade limpa se alguém sugerir recebe visita da Yakuza na mesma noite. Curtimos. Quase o oposto do parque tranquilo com o velhinho curando o teto de sapê.
Comemos numa ramenria que se proclamava bicampeã do concurso de melhor ramen do Kinki. (Kinki é outro nome pra Kansai, em termos de hoje a RM de Osaca, que inclui Nara, Quioto, Kobe, e Himeji). Apesar do troféu era um lugar simples, com cozinheiro e balconista com cara de serem irmãos e no qual se fazia o pedido numa máquina de tíquetes do lado de fora e pegava os hashi num paliteiro no balcão. O próprio miojo, artesanal, com ovo cozido no ponto certo, com a gema molinha, e coisas diversas dentro, num molho de missô negro ou de cogumelo, não sei se era o melhor do Kansai mas bom pra caramba era.
Voltamos apressados para a estação shin-Osaka, mas perdemos o trem. O que não tinha problema nenhum, porque o shinkansen entre Osaca e Tóquio é basicamente o metrô mais rápido do mundo, e passa literalmente de cinco em cinco minutos ou menos. Pegamos o próximo, então, e lá fomos nós. A viagem não era tão cênica assim, parte porque as cidades se aglomeram em volta do caminho do trem, parte porque estava um bruta nevoeiro. Mari dormiu. Chegamos em Nagóia já ao anoitecer, mas ainda a tempo de sair pra olhar o lado de fora da estação, descobrir que o nevoeiro não deixaria olhar nada, fora que as placas de sinalização adicionavam ao chinês, inglês, e coreano o português, e pegar o trem (que NÃO partia de cinco em cinco minutos) rumo a Ise. Quando entramos nele, a ingrata surpresa: era um rápido "estilo metrô." Mari, mesmo assim, dormiu de novo. Thuin, com a dorzinha nas costas de passar três horas num metrô, ficou olhando a paisagem noturna passar.
Em Ise, a estação era, também, mais simples do que imaginávamos para o principal centro de romaria do Japão; em compensação, o albergue era praticamente na porta. Aliás, mais perto, apesar de ser no quarteirão seguinte, que o hotel de Kazan; a falta de uma praça monumental fazia a diferença. O albergue, uma casa meio com cara de dilapidada e cheio de belos grafites dentro, tinha uma equipe simpaticíssima, que nos apresentou aos adolescentes que bebiam na sala comum. Um deles cumprimentou Thuin "Mariria! Bem vindo!" Então... subimos para nosso quarto, que era de tatame, não muito limpo mas ok, descansamos um tento muito, e fomos dar uma olhada na cidade, que era tão vazia quanto se esperaria duma cidadezinha a altas horas da noite. Não quisemos comer num sukiyaki com cara de fast food, nem num restaurante italiano com cara de caro, então compramos uns ingredientes (cogumelos, nirá, alho poró, ovos, tudo fresquinho) numa loja de conveniência pra fazer espaguete na cozinha do albergue. Também fomos até o começo do terreno do santuário de Ise, na outra ponta da rua da estação, e passeamos um pouco mais pela cidade, por mais que tivesse tudo fechado. Uma curiosidade que reparamos foi que, ao contrário do normal do Japão, havia latas de lixo nas ruas, e não só as latas ao lado das onipresentes máquinas de bebidas.

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