Friday, April 15, 2016

15.4.2015 Ise, 12 a 17C, Altitude 56m



Acordamos, e fomos tomar banho - de chuveiro, só; a banheira anunciada não tinha cara de particularmente limpa. O banheiro do 4o andar tinha vista para quase toda a cidade, se algum zé-mané abrisse a janela para deixar entrar o vento frio cortante enquanto tomava banho quentinho. Hipoteticamente. Do albergue para o santuário exterior, o Geku, dedicado a Toyouke Omikami divindade das colheitas e provedora do palácio celestial de Amaterasu Omikami deusa do sol e rainha do céu, fomos a pé, beem lentamente porque a rua principal era mais atraente de dia que de noite.  Mari tomou um excelente sorvete numa leiteria, e olhávamos as lojas dedicadas aos romeiros e turistas. Chegando no Geku, reparamos que a faixa etária dos turistas ali era um tico mais velha que em outros pontos turísticos. Digamos, de 50 pra cima, pelo menos, e a maioria em excursão. Tinha um outro casal de seus 30 solitário, só. Na entrada, também, o museu dos santuários, erguido em 2013.

Fomos primeiro ao próprio santuário, e realmente é uma experiência incrível. Os santuários de Ise são ao mesmo tempo novinhos em folha e velhos como a noite dos tempos porque, como santuários "vivos," são derrubados e reconstruídos, com o mínimo de alteração possível, de vinte em vinte anos. Assim, as edificações principais (algumas edificações acessórias são mais antigas) tinham ao mesmo tempo cheiro de madeira nova e as brumas da pré-história em volta. E brumas literais já que, como bom santuário xintô, uma floresta sagrada faz parte do próprio templo. Para aumentar ainda mais o estranhamento "pré-histórico" do local, no xintô o templo é casa do deus, e não local de oração: os santuários interiores de Ise são vedados aos mortais.

A floresta é de criptomérias, enormes, primas das sequóias californianas, da altura de prédios de 20 andares, com aqui e ali outras árvores, de todos os tamanhos, e pequenos subtemplos, dedicados a outros deuses. São os palácios de Amaterasu e sua majordoma, e contèm a versão divina de todos os cortesãos e funcionários de um palácio. Outra diferença desse xintô "primitivo" pra forma mais urbana, mais budistizada, que tínhamos encontrado em Quioto e Miyajima: aqui, o cavalo sagrado não é uma estátua decorada, é um cavalo mesmo, vivo e resfolegante, um árabe ou andaluz de pêlo branco de doer os olhos. Uma plaquinha do lado do estábulo avisa que o bicho só passa ali, em seus deveres divinos, umas três horas de dia e outras três à noite, sendo exercitado regularmente por um sacerdote-cavalariço e dormindo o resto da noite num estábulo um pouco mais moderno do que o século VII.

Saindo do Geku, passamos pelo museu da reconstrução, que em gravuras e objetos mostra como ela é feita, incluindo todos os passos do processo de criação dos acessórios (até os sapatos dos sacerdotes e enxadas de quem cava os alicerces), que Mari em particular achou fascinante, com uma laca de 38 camadas "dissecada" em cada camada, ou estátuas em degradé do bloco bruto à escultura polida. Também há no museu uma réplica em tamanho real do palácio divino de Amaterasu, que na verdade é o que poderíamos ver dele, já que ali perto, na realidade, só se vê é um muro.

Pegamos o ônibus para o Naiku, o palácio da própria Amaterasu; o ônibus, além de ser curto, era mais ou menos equivalente ao de Quioto, mesmo andando num tecido urbano muito menos denso. Tinha uma máquina de troco, também, ao invés do motorista dar troco: tudo que ele tinha que fazer era ver se você colocou todo o dinheiro, trocado, antes de sair. Saltamos, ao lado de um templo budista, e andamos pela rua de compras - mais ou menos do mesmo tamanho da de Fuximi, mas muito mais calma, sem gritaria, sem sushi de bacon. A realeza não curte os excessos de mercadores... compramos um saquê e uma cerveja locais, e seguimos para o santuário, separado do espaço profano por um enorme torii (tinindo de novo) e uma ponte (idem, acho que já deu pra entender: tudo reconstruído em 2013). A experiência era parecida com a do santuário exterior, mas ainda mais intensa, ainda mais "caímos no Princesa Mononoke." As criptomérias, ainda maiores, com uma ou outra canforeira quase tão enorme quanto pra dar variedade.

O palácio interior de Amaterasu fica no alto de uma escadaria. Só se pode ver a cerca e uma capelinha de oferendas, normalmente, mas na ocasião um sujeito estava lá fazendo a sua oferenda, algum figurão a quem foi permitido atravessar a primeira cerquinha para fazer isso (a segunda cerquinha só sacerdote; a terceira, nem sacerdote atravessa, antes de escoados os vinte anos).  Fizemos nós mesmos a nossa oferenda - não se pode, ali, avisam as placas, rezar por si ou pela família, só pela  comunidade maior, por cidades e países. Não se deve importunar a rainha do céu com assuntos comezinhos.

Na saída, de volta ao mundo terrestre, fomos direto (o caminho do ônibus foi bem mais curto, devíamos ter pego esse antes) para a estação de trem, para pegar uns bentô e o trem rumo às Meoto Iwa, as pedras casadas representando os deuses que teriam criado o Japão (não o mundo), Izanagi e Izanami. A estação Futaminoura, onde ficam as pedras, é mínima, sem funcionários e na forma um TIQUINHO brega das próprias pedras, se tivessem sido desenhadas pelo Hans Donner, e coberta de vidro fumê. No banheiro, ao lado do mictório, cinzeiros.

Se Ise é pequena, Futaminoura é mínima. O espaço que andamos, da estação à praia e de uma ponta da praia à outra, basicamente compreende a vila inteira, e foi uma caminhada de pouco mais de um quilômetro. Há um pequeno parque-calçadão na parte da orla que não tem praia na frente, que se estreita quando aparece a praia, de areia vulcânica cinza e cascalho misturados. A cada 200m, um quebramar, indicando que apesar daquilo ali ser teoricamente baía de Ise, não era um pedaço muito tranquilo de mar, mas essas ondas não estavam visíveis quando fomos. Só marulhos e murmúrios. Antes de ir às Meoto Iwa (que são, também, um santuário xintô, onde se deve purificar mãos e boca antes de entrar), Thuin resolveu fazer a purificação no próprio mar ao invés de na fontezinha. Afinal, do reino de Amaterasu ao de Iemanjá. Antes das pedras, um monte de esculturas de sapos e rãs. As próprias pedras são bem menores do que esperávamos; a corda de palha entre elas deve ser grossa, mas se perde na distância. Mas o sol se pondo contribuía para o efeito, mesmo se ele se recusava a se pôr entre as pedras como nos cartões postais.

Enquanto o sol demorava a se por (um longo beijo entre Amaterasu e Iemanjá?), fizemos piquenique sobre o quebra-mar, de sushi e inarizushi (tofu recheado de arroz de sushi e frito) com o saquê da rua do templo, absolutamente delicioso. Na volta fomos por dentro, pra escapar do vento do mar que cortava. Na chegada ao albergue, Mari deitou dois segundos e dormiu; Thuin lavou a roupa na máquina de lavar do quarto andar, fez um jantar rápido pra si mesmo conversando com outra hóspede, e desistiu (pra se arrepender depois) de sair pra tomar banho no banho público anunciado na porta do quarto.



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